Em 13 de janeiro de 1980, o jornal FOLHA DE SÃO PAULO traz, em seu editorial, a possibilidade da morte do ministro Petrônio Portella (para eles com um “l” só”) ter sido provocada por uso de soro contaminado. O texto é assinado pelo jornalista Samuel Wainer, com as iniciais S.W. Confira, ipsis litteris, o editorial publicado pela FOLHA DE SÃO PAULO há 35 anos.
Folha de S. Paulo
A Ùltima Missão Portela
As controvérsias circunstanciais que cercaram a morte do ministro Petrônio Portela, continuam sendo tema de debates nos círculos médicos do país. Naturalmente, tais comentários, envolvendo a possibilidade de sua morte ter sido provocada por um soro contaminado, raramente ultrapassam as muralhas do inflexível código ético da medicina. Em verdade, esses acidentes têm sido tão frequentes que se tornam praticamente impossível sonegar ao grande público esta cruel e inquietante realidade. E, mais ainda, é um fato comum não apenas em hospitais localizados na província, como também em São Paulo, sem dúvida o campo mais avançado do país no setor da medicina. A esse propósito, um consagrado médico paulista dizia ao comentarista, numa referência indireta à morte do ministro Portela: “A medicina é uma coisa muito perigosa”. Esta frase paradoxal (afinal perigosa deveria ser a doença e não a medicina), lembra um conceito já firmado no jornalismo moderno: o excesso de informação pode levar à desinformação. No caso da medicina de nossos dias, a multiplicidade de medicamentos que os grandes laboratórios internacionais lançam continuamente, frequentemente numa superposição incontrolável, conduz, algumas vezes, à sua aplicação prematura, outras a descuidos na sua preservação e outras, ainda, a erros de apreciação pelos que os receitam.
Como evitar que isso ocorra? Uma das fórmulas mais desumanas e gananciosas que têm sido utilizadas pelas multinacionais que hoje controlam praticamente 100% da indústria farmacêutica mundial, consiste na utilização de povos do terceiro mundo como cobaias de novos medicamentos. E é também uma maneira de burlar a severa vigilância que sofrem nos seus países de origem. No Brasil, por exemplo, não são raros os comunicados emitidos na fiscalização por nossos órgãos de fiscalização médica, anunciando a retirada do mercado de alguns produtos farmacêuticos. Mas essas medidas são uma gota no oceano de medicamentos que diariamente inundam nossas drogarias. Além do mais, a força de corrupção (que hoje se chama “marketing”) na fiscalização farmatológica consegue que muitos remédios condenados sejam relançados sob nova denominação.
Por sua vez essa fiscalização raramente atinge os medicamentos contaminados. Ainda ontem o Ministro da Saúde, Jair Soares, revelava esse fato horripilante. Mais de cinco mil frascos de albumina humana e plasma anti-hemofílico, contaminados por vírus de hepatite, foram comprados pela Central de Medicamentos no Laboratório Lip, que tem capital brasileiro, alemão, norte-americano e até de um país africano. Mais de 70% dos remédios contaminados foram distribuídos por todo o país e consumidos não só por pacientes do INAMPS, como em clínicas particulares.
Não é a primeira vez que tal violentação dos mais rudimentares princípios de respeito à vida humana vem a público. Mas o poderoso “lobby” das multinacionais tem conseguido anular e abafar todas as medidas que são sugeridas contra elas. Até agora prevalece a impunidade. Talvez a morte de uma personalidade com a projeção do senhor Petrônio Portela leve, enfim, o Governo a um combate mais efetivo a esta sinistra prática. Seria a última e grande missão Portela, sem dúvida a mais generosa de todas as missões que lhe deram lugar e destaque na história política do país. (S.W.)