O desentulho aflorou recordações da época em que fui aluno do Ginásio Clóvis Salgado, quando a praça servia de referência para os estudantes se reunirem à sombra das amplas copas dos oitizeiros na expectativa do inicio das aulas anunciado pelo toque de estridente campainha. Àquela época, não sentíamos emoção nas coisas com o encantamento dos dias atuais, provavelmente por não olharmos para a realidade presente na proporção devida. Mas ficou para sempre, entranhado no olfato, o cheiro forte do oiti madurinho; no paladar, o gosto travoso que permanecia na boca por alguns minutos como algo indesejável; na lembrança, imagens repetidas da queda livre do fruto pontilhando o solo de amarelo. A alegria daquelas tardes, em que não havia ambiente para enveredávamos pelos caminhos das drogas, foi uma das características da minha juventude.
NA PRAÇA ANTONIO DUMONT OS OITIS VOLTAM À CENA
Por:Reginaldo Costa
Repercutiu imediatamente a notícia de que estariam demolindo os pardieiros improvisados em paus e sucatas de ferro que emporcalhavam a Praça Antonio Dumont. Sobre o assunto, não faltaram comentários, nas redes sociais.
Ao circular pelo centro da cidade e deparar com as máquinas trabalhando no desmonte e remoção de entulhos, constatei o fato, sentindo a sensação de contentamento interior que me ocorreu por dois motivos: a integração das pessoas a atividade econômica com condições dignas de trabalho e a liberação do espaço que volta a cumprir a função de componente paisagístico estratégico.
Não nos esqueçamos de que, outrora, a construção de um prédio em que funciona o HEMOPI, equivalente a um quarto da área da praça, comprometeu, irremediavelmente, o conjunto no seu visual. Imaginem um olhar contemplativo do panorama sem aquela edificação que impede a visualização completa da fachada do prédio histórico da Santa Casa de Misericórdia!
Após o desentulho foi possível a todos raciocinarem a dimensão do descaso que por absoluta falta de vontade, sucessivas administrações municipais procrastinaram, pontuando pela conivência com o comércio ilegal e a preparação de alimentos sem as mínimas condições de higiene, a servir de espelho para hospital, escola, restaurantes, panificadora e farmácias, instalados no entorno da praça que deveria ser preservada conforme estabelecem as leis.
É de se lamentar que alguns considerem a obra irrelevante. Como já dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Evidente que estes não pensam no conjunto da sociedade e na moralização da coisa pública, além de incorrem no erro de avaliação de que conservar o bem comum não rende dividendos políticos. Na verdade, a decisão, impactante, recupera a paisagem, dá uma destinação legal aos ambulantes, contribui para fomentar a socialização das pessoas e colocar em prática, normas e orientações da vigilância sanitária.
A partir de iniciativas dessa natureza, cujo principal objetivo é a revitalização de áreas impossibilitadas de uso adequado, no caso, invadidas com aval das próprias autoridades, e estas, em nome do clientelismo estabelecem a permanência no poder, é que se percebe um olhar diferente em relação ao patrimônio público e ao povo como elemento de fundamental importância, sem que este seja considerado massa de manobra.
Os oitizeiros estão entre as árvores que compõem a riqueza urbanística da cidade de Parnaíba. A derrubada de alguns exemplares aponta para a necessidade de monitoramento de projetos de produção de mudas em viveiros, sabendo-se ser uma espécie que a raiz por não se espalha, não causa danos nas calçadas muito menos as edificações. O plantio poderia favorecer logradouros que estão surgindo com o atual processo de crescimento da urbe.
Fechadas as cortinas da irracionalidade, os ventos voltam a circular livres da poluição visual que comprometia a plena harmonia com o meio ambiente. Em oposição ao cenário degradante, ganha lugar o exercício da cidadania em que os anseios da população são correspondidos no direito de ir e vir.
Então, vamos à praça, seja para namorar, fortalecer a espiritualidade, jogar conversa fora, mas usufruí-la como recurso disponível para melhorar a qualidade de vida da população. Que os benefícios sejam retribuídos respeitando-se o conjunto de detalhes arquitetônicos, embora visivelmente identificados como bens materiais, fazem parte da riqueza imaterial, e na da “Santa Casa”, conforme o povão a intitula, o cair das tardes estimula sentimentos de comunhão com a natureza de encher os olhos e ouvidos quando por ela circulamos sentindo o cheiro dos oitis maduros, espalhados pelo chão, apreciando o verde que se destaca na imensidão do céu azul, ao som de cantos primaveris de aves que na verdade migraram, certamente para objetivos longínquos já que as fontes de sobrevivência escassearam, mas as poucas dezenas que ainda despontam são suficientes para proporcionarem momentos de paz, quem sabe, romanticamente sentados n’algum banco, como nos velhos tempos.
EDIÇÃO:BERNARDO SILVA